Para Thales Teixeira, professor de marketing online da Harvard Business School, vivemos uma nova onda da digitalização – a do descolamento.
A digitalização da economia segue em ritmo frenético. A última onda chama-se “descolamento”. O nome descreve o que um número crescente de pessoas têm feito.
Elas têm revolucionado o conceito de comprar, descolando várias atividades que sempre andaram juntas, como por exemplo, a experiência de comparar produtos ou serviços, decidir pagar por um deles e usá-lo.
Muito complicado? Os exemplos são bem ilustrativos. Nos Estados Unidos, o site Rent the Runway oferece o aluguel de acessórios e roupas de estilistas renomados a preços acessíveis.
No caso, a empresa dissocia algo percebido como prazeroso por uma parcela dos consumidores — poder experimentar um pouco do “mundo da alta costura” — de algo visto como um problema — ter de pagar caro por peças que são usadas em poucas ocasiões.
Já a empresa de games Supercell, criadora do megasucesso Clash of Clans, permite que qualquer um possa jogar online sem ter de comprar seus games. Apenas aqueles que querem avançar no jogo são convidados a pagar.
Essa fase de descolamento é a terceira da era digital. A primeira foi batizada de “desagregação” e ocorreu entre 1995 e 2005. Nesse período, diversas empresas passaram a ter seus produtos disponibilizados na web em partes. As gravadoras viram seus CDs serem substituídos pelo iTunes, uma música de cada vez.
Por volta de 1999, uma nova onda ganhou força. Fabricantes e provedores de determinados serviços passaram a usar a internet para alcançar diretamente seus consumidores finais num processo que passou a ser chamado de “desintermediação”. O melhor exemplo é o de empresas aéreas deixando de lado agências de viagens.
Essas duas primeiras ondas davam a impressão de que diversos setores sairiam ilesos de intensa disrupção digital. Muitas empresas, afinal, ofereciam produtos que não podiam ser compartilhados pela web tão facilmente quanto um filme ou uma música.
Por isso, a sensação era que serviços, como o de táxis, estavam livres da competição digital. Alguém aí lembrou de uma empresa que começa com “Ub” e termina com “er”?
A percepção de que fabricantes de automóveis, empresas de telecomunicações e grandes varejistas não corriam o risco de ter seus setores transformados pela onda digital estava ligada às elevadas barreiras de entrada em seus mercados. Era difícil ter recursos e escala para competir com tais empresas.
O fenômeno de descolamento, porém, permitiu que novos empreendedores entrassem nesses mercados sem construir ou comprar fábricas, lojas ou frotas de carros.
Os novatos — geralmente startups criadas por jovens empreendedores — têm tirado proveito do que já existe. E os fundos de capital de risco adoram essa abordagem.
O descolamento vem impulsionando uma transformação nos hábitos de consumo. Cresce o número de pessoas interessadas em compartilhar produtos em vez de comprá-los.
Também é cada vez maior a quantidade de consumidores que visitam lojas físicas apenas para testar ou experimentar algo que depois compram online mais barato – prática conhecida em inglês como showrooming.
No geral, os consumidores levam em conta três fatores ao tomar uma decisão que pode resultar em descolamento: preço (“posso comprar esse produto mais barato?”), esforço (“será mais fácil adquiri-lo online?”) e tempo (“quanto tempo vou ter de esperar para receber?”).
O peso atribuído a cada um desses fatores varia muito. Há quem, depois de ter se deslocado até uma loja para dar uma olhada em uma televisão, por exemplo, aceite pagar um pouco mais pela conveniência de já sair dali com o produto.
Da mesma forma, para alguns alugar um carro em uma locadora tradicional pode ser mais conveniente do que no site americano Turo, uma espécie de Airbnb de automóveis. O Turo une pessoas dispostas a alugar o próprio carro e gente à procura de um veículo para locar.
O desafio das tradicionais
Em geral, as empresas tradicionais respondem de duas maneiras a essa onda de descolamento. A primeira resposta é um esforço para colar de novo.
Empresas de taxi têm tentado convencer governos locais a proibirem o Uber. Companhias de telecomunicação têm tentado forçar seus usuários a abandonar aplicativos de comunicação, como Skype ou Whatsapp.
Entre as batalhas mais acirradas está a que vem sendo travada em torno do showrooming. A Celiac Supplies, uma pequena loja especializada em alimentos sem glúten em Brisbane, na Austrália, decidiu cobrar uma taxa equivalente a dez reais dos clientes que vão à loja “só para olhar”.
O problema dessa abordagem é que ela tenta forçar os consumidores a fazer algo que não querem. No longo prazo, a maior parte das tentativas de colar algo que foi descolado é insustentável. É como tentar colar as cascas de um ovo depois de quebrá-la.
Outra alternativa usada pelas empresas tradicionais é tentar se realinhar. A Best Buy, maior rede de lojas de eletrônicos dos Estados Unidos, sofria muito com a showrooming. Várias pessoas iam nas suas lojas, pediam ajuda dos vendedores e depois compravam seus eletrônicos no site da Amazon.
Em vez de cobrar uma taxa dos clientes, como fez a loja de alimentos da Austrália, a Best Buy decidiu cobrar dos fabricantes de eletrônicos.
A empresa percebeu que seus fornecedores teriam muito a perder se as pessoas não pudessem manusear e experimentar produtos expostos nas lojas Best Buy.
A partir daí, começou a cobrança de uma “taxa de alocação” para quem quisesse ver seus eletrônicos expostos nas áreas de maior visibilidade.
Com o aumento da receita com a taxa de alocação, a Best Buy conseguiu oferecer preços mais competitivos na briga com as lojas online.
Nessa mesma linha, algumas empresas americanas de telecomunicações têm respondido à competição com o Skype com planos que cobram uma taxa fixa, independentemente de quantas ligações se faça.
Na prática, elas estão admitindo que não faz mais sentido cobrar por ligações telefônicas. Em contrapartida, essas empresas estão aumentando os preços dos planos básicos de conexão à internet, que os consumidores precisam para acessar serviços como o Skype e Whatsapp.
É óbvio que nem todos os setores estão sujeitos ao descolamento. As exceções concentram-se em atividades nas quais descolar é muito caro ou inconveniente para os consumidores.
Educação é um bom exemplo disso. Em geral, uma mesma instituição faz pesquisas, ensina alunos, testa seus conhecimentos e fornece diplomas. Essa tem sido a realidade até agora. Nada, porém, garante que será assim para sempre.
Quem sabe alguém que esteja lendo esse artigo consiga pensar numa maneira de descolar o setor de educação. Uma coisa é certa: a onda do descolamento deve seguir avançando.
Entre os setores que ainda podem ser transformados estão os serviços oferecidos por governos e o setor de saúde. Empresas tradicionais fazem bem em se preparar para o combate.
Entender a teoria de descolamento pode ser uma arma importante para pensar em alternativas viáveis nessa guerra iminente.
*Especialista em marketing online e disrupção digital, Thales Teixeira é professor da Harvard Business School
Fonte: Exame.com